sexta-feira, outubro 07, 2005

Cobaias humanas

Sem saber, pessoas foram usadas em testes radiativos pelos governos dos Estados Unidos

Os alunos da escola estadual Fernald, no interior do Estado de Massachusetts, ou seus pais, não tinha como saber que, naqueles anos 40 e 50, os imperativos da Guerra Fria interferiram diretamente em sua vida. Os garotos, deficientes mentais, estavam sendo usados como cobaias humanas pelo governo dos Estados Unidos, sob o signo da ameaça de uma guerra atômica contra Moscou. A escola servia na merenda mingau de aveia contaminada com isótopos radiativos.


Curdos no Iraque: alvos em pesquisas com armas químicas.As Forças Armadas americanas queriam avaliar as conseqüências da radiação no organismo - não sabiam exatamente quão nefastas eram, mas deviam supor, tanto que a experiência era mantida em rigoroso sigilo. Casos assim, de espantosa crueldade, estão vindo à tona aos poucos desde que, sob pressão das evidências fornecidas por sobreviventes e familiares desses laboratórios clandestinos, o presidente Bill Clinton decidiu, em 1994, abrir os arquivos e incentivar um levantamento completo de tudo o que foi feito no pais em nome da ciência e à margem da ética.


"É um assunto muito doloroso para os Estados Unidos"
,
disse a VEJA o diretor do Centro de Ética Biomédica da Universidade de Virgínia, Jonathan Moreno.

"Nos anos 40 havia poucas leis que regulamentassem os testes com seres humanos, e a ameaça da União Soviética parecia imensa. Os cientistas do governo estavam entre a cruz e a espada."


Moreno é autor de Undue Risk: Secret State Experiments on Humans (Risco Indevido: Experimentos Secretos Governamentais em Seres Humanos), uma cuidadosa investigação a ser publicada em outubro nos Estados Unidos pela editora W.H: Freeman & Company.


Testes com prisioneiro num campo nazista: aveia contaminada servida a crianças deficientes.O tema é constrangedor porque normalmente se associa essa espécie de prática às grandes tiranias do século, como a Alemanha nazista e a União Soviética, às quais os americanos serviram de contraponto democrático. Foi com a revelação das atrocidades cometidas por médicos nos campos de concentração nazistas que se adotaram normas mundiais contra experiências das quais seres humanos participavam compulsoriamente.


Em silêncio, os Estados Unidos ignoraram essas decisões. Nos anos 40 e 50, cidades inteiras foram expostas deliberadamente aos efeitos da radiação. Moreno integrou a equipe que recebeu carta branca do governo Clinton para investigar esse e outros programas nucleares secretos postos em prática entre 1944 e 1974. Os horrores compilados pelo comitê levaram o presidente, em outubro de 1995, a pedir desculpas públicas à nação.


"Não há como desculpar o que foi feito", diz Moreno.
"Mas é preciso analisar os fatos à luz da realidade da época."


Eram tempos de medo e a sobrevivência da espécie humana parecia depender do controle da tecnologia atômica. O fato de muitas experiências terem vitimado minorias étnicas, contudo, evidencia a perversidade da lógica que as orientou, segundo a qual algumas vidas humanas valem mais do que outras.


Em maio de 1997, Clinton voltaria a se desculpar por um repulsivo programa de estudo do Serviço de Saúde Pública federal. Para observar, a longo prazo, os efeitos da sífilis em pacientes negros, alguns foram privados de tratamento sem saber, entre os anos 30 e 70. Moreno revela outro caso, envolvendo índios navajos empregados, na década de 50, em minas de urânio, então o principal combustível atômico. Os navajos não foram informados sobre as malefícios da radiação e não tiveram direito a cuidados como um simples sistema de ventilação. Como resultado, muitos morreram de câncer.


Arsenal Genético
- Outros casos que só agora se tomam públicos incluem injeção de plutônio nas veias de pacientes em hospitais, que de nada desconfiavam, e o envio de soldados para locais de teste de bombas atômicas logo após as explosões. Ao contrário do domínio do ciclo do átomo, necessário para o desenvolvimento das armas nucleares, as experiências com agentes químicos e biológicos são relativamente baratas e difíceis de detectar. Elas continuam a campear, sobretudo em países pobres governados por ditadores.


O exemplo típico é o Iraque. Milhares de prisioneiros curdos serviram a testes individuais de armas químicas e bacteriológicas, sendo amarrados a estacas e alvejados com bombas recheadas de substâncias armazenadas em laboratórios. Em experiências de puro horror, militares iraquianos despejaram o conteúdo de seus arsenais de armas químicas letais sobre aldeias do Curdistão, dizimando a população.


Menos conhecidas são as histórias de requintado horror desveladas pela Comissão da Verdade e da Reconciliação da África do sul. Amontoaram-se relatos de uso de armas de proveta contra oponentes do regime racista enterrado há cinco anos. Os esforços de desenvolvimento de microrganismos manipulados em laboratório que esterilizassem a população negra, mas não a branca, apontam para um novo capítulo na história das armas de guerra: o arsenal genético.


O conhecimento em detalhes das irresponsabilidades do passado responde, antes de tudo, à demanda por justiça, mas também à curiosidade científica. Os Estados Unidos guardaram por mais de uma década os registros das atrocidades cometidas pelos japoneses contra prisioneiros chineses antes e durante a II Guerra Mundial.


Laboratório militar americano nos anos 50.Homens, mulheres e crianças foram infectados com as bactérias causadoras de peste bubônica, antraz, febre tifóide e cólera. Depois de doentes, eram expostos a vivissecções sem anestesia. Ao contrário dos Estados Unidos e da Alemanha - pais que já pagou mais de 80 bilhões de dólares em indenizações às vitimas do nazismo - o Japão se nega a admitir tais barbaridades.


Mais de cinqüenta anos depois, a coleção de crueldades perpetradas em nome de pesquisas duvidosas pelos médicos nazistas comandados por Josef Mengele no campo de concentração de Auschwitz parece não ter fim.


No ano passado, o médico alemão Hans Münch, num depoimento à imprensa de seu pais, contou que em Auschwitz era frequente deixar crianças morrer de fome para estudar a morte natural. Pesquisas médicas em humanos são imprescindíveis, seja para testar medicamentos, seja para compreender os mecanismos de certas doenças. Daí a chegar ao argumento inaceitável de que os ganhos sociais compensam os danos aos indivíduos é um passo.


Para evitar abusos, é preciso que existam pessoas que se disponham voluntariamente aos testes, como ocorre hoje em algumas bases militares americanas, mas sob risco calculado e permanente vigilância de organismos civis.

Revista Veja - 28 de julho, 1999

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